Antártica Original

Eles estão sentados em seu bar favorito, na sacada do Edifício Maleta. A noite é fresca do início de agosto de um ano qualquer. Cícero veste camisa de algodão cinza, colete preto e gravata borboleta vermelha e branca, que Maria prontamente ridicularizou assim que o viu subindo a avenida Augusto de Lima. Maria veste saia bege de cintura alta, camisa florida de tecido leve e casaco preto. Ela tem cabelo curto e coração mole. Ele usa grandes óculos pretos e ostenta um sorriso cínico. 

 

“Nós nascemos sozinhos, vivemos sozinhos e morremos sozinhos”, ele diz, em resposta à queixa sentimental da vez. Ela toma um gole da Antártica Original de sempre antes de retrucar. “Eu não entendo como as pessoas conseguem idolatrar uma frase tão idiota do Welles. A gente nasce sozinho? Você não só não estava sozinho quando nasceu como estava, literalmente, ligado à outra pessoa. Você saiu de dentro da sua mãe, grudado à ela pelo cordão umbilical, berrando para os ouvidos de médicos e enfermeiras, do seu pai, dos seus avós, do seu irmão, dos seus tios. Foi festejado, beijado e acariciado por mais gente do que merecia, se quer saber”. Ela acende um cigarro, antes de continuar, depois de um longo trago. “Ainda mais você, Cícero, falando de viver sozinho, não consegue ir ao cinema sem ligar pra mim. Nós somos seres humanos, nós somos seres sociais, interdependentes, carentes, falantes, bichinhos de monte, como diria o vô Jorge”. Ele intensifica o sorriso, levanta as sobrancelhas irônicas e questiona, “E a morte? Morreu acabou, você e a luz, ou você e o nada, vai saber, e mais ninguém”. “Mesmo assim, cara”, agora já nervosa, “se a sua consciência vai pro nada, seu corpo fica rodeado de todo mundo que te amou. As pessoas se despedem, choram, conversam com você, te carregam e te plantam em um buraco.” Apaga o cigarro. “Agora, se o destino é a luz, vai ter gente te esperando do outro lado, certeza”. Ele ri, ela não. 

 

Maria se espanta com a tristeza repentina que sente. Pousa os olhos na lateral do museu Inimá de Paula e se lembra de um jantar, há muito tempo, entre obras do Vik Muniz. Ela pensa que odeia Vik Muniz e odeia a Elizabeth Taylor de pequenos diamantes. “O problema é que não é só gente a nos fazer companhia”. Cícero não sorri mais. “São as gentes e seus fantasmas”, ela expira e pede mais uma. 

 

Todas as cartas são de amor…

… e todas as músicas falam de você. Em pé no meio da Paulista, com você em meus braços, é o único pensamento dotado de sentido a me escapar, furtivo. O resto é minha pele a dizer desejos, a estremecer surpresas. A manifestação segue seu curso, lenta, constante, menos densa, tão próxima do fim quanto a noite. O relógio eletrônico marca 23:42. Os números, sem sentido, já não ditam o ritmo da avenida transbordada de gente, bandeiras, máscaras, palavras e um Golden Retriever. Alguns adolescentes avistam policiais à nossa direita e cantam. “Que coincidência, sem a PM, não tem violência!”. Você tira a cabeça do meu ombro e sorri. Se diverte. Ergue o rosto para mim. “Você é linda”. “São seus olhos”. Não. São os seus olhos, mel por trás de armações roxas. É sua boca que se abre em sorriso branco de mil dentes, quente como tarde de sol em sábados esquecidos. São seus cabelos e pele, mãos e gosto e cheiro e sua existência em plena segunda-feira, nesta esquina, nesta faixa de pedestres, no centro do Brasil, no centro do Mundo. “Eu nunca beijei ninguém na Paulista, sabia?”. “Nem eu”. Seus lábios são doces e tento segurar a represa dentro de mim. Compotas velhas, abertas à vida pela primeira vez na noite passada. Ontem foi há mil anos. Seguro sua mão e seguimos contra a corrente. Um garoto à nossa esquerda tenta afixar um cartaz ao canteiro central. “Porra, Pedro, no mijo não, né?”. Mais uma vez sua risada reverbera em mim enquanto você sinaliza para o grupo a rir do Pedro, do pobre do Pedro, que só queria fazer durar por mais tempo seu acanhado pedido de liberdade. Eu avisto o velhinho antes de você. “E esse cara, é turco?”. “Turco?”. Ele vem devagar, bem devagar, auxiliado menos pela bengala que pelo filho a segura-lo pelo braço. “Tenho 94 anos, pós-doutorado em…”. As palavras dirigidas a não-sei-quem se perdem. Não sei se a noite, a falta de sono ou o chapéu e mantos verde-bandeira sobre o corpo tão frágil, paro e aplaudo. Me viro e vejo você me olhar através da tela do celular. Congela momentos que nunca verei. “Eu não entendo essas pessoas posando pra fotos com seus cartazes de Ou-para-a-corrupção-ou-paramos-o-Brasil. Vieram aqui pra sair no Instagram dos outros?”. Não compartilho do seu desprezo. Simpatizo com eles, não sei bem ao certo por quê. Talvez porque eu não escute o Hino Nacional entoado ao longe, enquanto a voz dolorida da Etta James cantarola, sem parar: At last…

Imagem: Rich Lam/Getty Images